- Por Vitória Soares
“Tentei ir embora, mas ele vinha atrás com aquele papinho que todos têm, de mudança, e por causa do meu filho eu voltei, porque ele e a família dele me proporcionavam uma vida melhor financeiramente. Eu estava desempregada e minha família sempre foi muito humilde. Por eu também não ter sido criada com meu pai, que me abandonou, eu criei na cabeça que precisava ter uma família, e nisso eu lutei muito, aguentei várias coisas”, relatou uma das mais de 10 mil vítimas de violência doméstica só esse ano no Tocantins.
Com apenas 25 anos, a jovem, que prefere não ser identificada, viveu meses em meio ao medo de mais uma agressão. Grávida e morando no mesmo ambiente que seu agressor, ela se viu sem saída e aguentou violências psicológicas, patrimoniais e físicas do ex-companheiro e pai do seu filho até o nascimento da criança, quando foi socorrida por vizinhos.
“Com 20 e poucos dias do meu filho nascido, eu queria ir para casa da minha mãe com meu filho, para ar o fim de semana, mas ele não queria deixar eu ir. Liguei para ela e avisei o que estava acontecendo, nesse momento eu e ele começamos a brigar. Nisso, ele pegou meu celular e quebrou todo no chão, pegou no meu pescoço, enquanto eu estava com meu filho no colo, e me jogou na cama. Eu já estava em pânico e chamei por socorro, os vizinhos escutaram e chamaram a polícia”, contou a jovem.
Esse é apenas um dos casos de violência doméstica e familiar que ocorrem diariamente no país e no mundo. De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado, desde janeiro deste ano 10.209 mulheres foram vítimas de violência no Tocantins, entretanto, muitas dessas mulheres desistiram de dar seguimento na denúncia, como evidenciam os números do Ministério Público do Tocantins (MPTO), que entre janeiro e setembro deste ano recebeu 815 denúncias das três principais cidades do Estado, Palmas, Araguaína e Gurupi.
O número apresenta grande diferença com os de vítimas contabilizadas pela Secretaria de Segurança Pública, que registrou 3945 boletins de ocorrência nas três cidades durante o mesmo período. Entre as causas para a divergência nos números está a dependência emocional e financeira da vítima com o agressor, como explica a Promotora de Justiça, Dr. Isabelle Rocha.
“Nós temos uma sociedade que pune a mulher que é vítima, às vezes o ex-companheiro é o único que trabalha ou o único que fica com os filhos quando ela trabalha, então mesmo quando ela quer denunciar, quando ela percebe que corre o risco dele ser preso e dela ficar sem ter com quem dividir os cuidados com o filho ou os custos da casa, isso pesa. Ela é vítima em um primeiro momento e é vítima depois”, explicou a promotora, que é responsável pelo Centro de Apoio das áreas do Consumidor, da Cidadania, dos Direitos Humanos e da Mulher, do MPTO.
União das mulheres em busca de liberdade e independência
Assim como ressaltado pela promotora, um dos agravantes nos casos de violência doméstica é a dependência financeira, por isso, entre as diferentes frentes de apoio às vítimas está a busca pelo fortalecimento econômico das mulheres. São diversos os casos em que as vítimas encontram força para sair do ciclo de violência após conquistarem novas oportunidades no mercado de trabalho.
Para Renata Ekcart, uma das idealizadoras do projeto Feira das Manas, que promove duas vezes ao mês a venda de artesanatos produzidos por mulheres tocantinenses, a possibilidade de ter uma fonte de renda e de estar em contato com outras mulheres está diretamente atrelada à liberdade.
“Nós já tivemos mulheres que vieram para Feira contrariando todo mundo, os maridos, as famílias, fugidas de outras cidades. E hoje algumas dessas mulheres que começaram contrariando o marido, estão fortalecidas, fazendo cursos e vendendo muitos dos seus produtos. A principal ideia é essa, que elas se fortaleçam, que consigam visualizar o quanto podem ser maiores, percebam que podem crescer com o seu trabalho”, explicou.

Outra forma de encontrar auxílio financeiro está atrelada a realização de cursos profissionalizantes, que podem ser realizados por meio de instituições públicas ou particulares. Para facilitar a busca por capacitações, as vítimas de violência podem buscar auxílio em órgãos que prestam apoio às vítimas ou entidades filantrópicas como a Casa 8 de Março, que realiza acolhimento das mulheres.
“Nós damos cursos pontuais para as vítimas que são acolhidas, também costumamos fazer junto a esses cursos campanhas com a sociedade, para arrecadar os materiais necessários para que elas possam começar a trabalhar. Além de divulgarmos o trabalho delas, buscamos dar prioridades para essas mulheres nas vagas que encontramos”, explica a presidente da Casa 8 de Março, Bernadete Aparecida.
Novas perspectivas para vítimas e agressores
Ações como as realizadas pela Feira das Manas e Casa 8 de março fazem parte de uma série de mecanismos necessários para enfrentamento à violência doméstica e familiar, assim como previsto na Lei Maria da Penha. Ela vai além da dimensão punitiva e garante a implementação de políticas públicas de prevenção, proteção e assistência às vítimas.
De acordo com a promotora, Dr. Isabelle, ações vindas tanto da sociedade civil, como das instituições, fortalecem a rede de proteção das mulheres.
“A gente precisa fortalecer a sociedade civil nessa defesa, a defesa da vítima é responsabilidade do Estado e da Sociedade, precisamos mesmo dessa integração, para que todos possam cooperar”, reforçou.
Diante desse cenário, órgãos como o Ministério Público do Tocantins contam com setores especializados na assistência às mulheres vítimas de violência, esse é o caso do Núcleo Maria da Penha, que oferece apoio às vítimas, por meio de serviços como a ouvidoria da mulher, (escute aqui mais sobre o canal) encaminhamento para abrigos, e econômico e acompanhamento. Além de promover ações educativas, como é o caso do projeto Desconstruindo o Mito de Amélia, que visa reabilitar e ressocializar autores de agressão.
“Eu presenciei várias vezes meu pai agredindo minha mãe, convivi com isso em casa por bastante tempo e quando você convive com esse exemplo dentro de casa, você assimila isso como correto, infelizmente para desconstruir isso não é fácil”, relatou um dos participantes do projeto.

Por meio de grupos reflexivos, acusados de agressões encaminhados pelo Poder Judiciário são orientados sobre a gravidade de práticas machistas e violentas contra as mulheres. Mais de 80 homens já foram atendidos pelo projeto, desses, apenas um rescindiu com o crime.
A coordenadora do Núcleo Maria Penha, Leila Maria Lopes, reforça que é possível notar a efetividade do projeto por meio do comportamento dos integrantes dos grupos.
“Quando eles chegam estão muito armados, acham que não deveriam estar aqui, que estão sendo injustiçados, porque muitas vezes eles não têm conhecimento da gravidade das suas atitudes, para eles é natural. Com o ar do tempo eles querem até ficar mais, pois eles percebem a violência que cometiam, então já saem com outra visão”, ressaltou.

Outras formas de enfrentamento realizadas pelo Ministério Público acontecem por meio do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes e Atos Infracionais Violentos, que oferta apoio psicológico, de assistência social e na área jurídica. Apesar de não atender exclusivamente mulheres, elas são maioria no recebimento de assistências pelo Núcleo.
Vítima de dois relacionamentos abusivos, Meire Bezerra foi uma das mulheres atendidas pelo Ministério Público, ela conta que no primeiro caso chegou a ficar em cárcere privado por três dias, sofrendo diversas agressões físicas e ameaças de morte, até conseguir fugir. Já no segundo sofreu com violências psicológicas e morais por anos.
Para Meire, o acolhimento recebido foi essencial para sair do ciclo de violência.
“Hoje eu me sinto muito bem, graças ao apoio que tive. Quero levar essas informações para o mundo, o processo de cura é muito lento, os primeiros meses você não se enxerga, é um resgaste da sua autoestima e amor próprio. Não foi fácil, mas é preciso buscar ajuda, porque quando a gente pede ajuda, ela vem, a gente percebe que têm pessoas que estão dispostas a ajudar”, desabafou.
“A educação é uma porta fundamental para mudança da consciência”
Falta de instrução, exemplos de violência em casa e na rua, além do machismo estrutural presente na sociedade são alguns dos diversos motivos que influenciam em comportamentos violentos em relação às mulheres. Por isso, o debate sobre o tema desde a infância até a vida adulta pode ter papel transformador na construção de uma sociedade não violenta, como explica a doutora em ciências sociais e pesquisadora na área de gênero, Cynthia Mara.
“Esse é o momento em que meninos e meninas estão em processo de formação, portanto a possibilidade disso influenciar no seu modo de ser será muito mais ampla. O educar para a igualdade é justamente isso, esse papel que deve ter a escola e família, de se envolver no debate”, esclareceu.
A troca de informações sobre o tema nas escolas se tornou obrigatória em 2021, por meio da Lei Nº 14.164, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir conteúdo sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica e instituir a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher.
A pesquisadora também ressaltou a importância de destacar todas as implicações relacionadas à violência de gênero.
“Se a gente quer construir uma sociedade com igualdade para homens e mulheres, a gente precisa educar e destacar que a violência tem várias implicações, sejam elas sociais, no campo da saúde ou da economia, então a educação é uma porta fundamental para mudança da consciência. É importante inserir esse debate em todos os momentos de formação das pessoas”, reforçou Cynthia.
Além de debater sobre o assunto, a divulgação de canais de denúncia e garantias previstas na Lei Maria da Penha segue sendo essencial para o combate a violência, já que é por meio da informação que vítimas ou testemunhas podem ter contato com órgãos de enfrentamento à violência. Entre os meios para buscar ajuda estão o disque 180, 190, Ouvidoria da Mulher – MPE (63 3216-7586) e Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher.